Orcas Artesãs: Baleias Criam “Escovas” de Algas e Revolucionam o Conceito de Higiene no Reino Animal

Pesquisadores registram pela primeira vez mamíferos marinhos fabricando e utilizando ferramentas para higiene pessoal, comportamento que demonstra sofisticação cognitiva e social inédita entre cetáceos

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A comunidade científica internacional está em alvoroço com uma descoberta extraordinária que redefine nossa compreensão sobre a inteligência das orcas. Pesquisadores do Centro de Pesquisa de Baleias (CWR), em Washington, documentaram o primeiro caso conhecido de mamíferos marinhos fabricando e utilizando ferramentas para higiene pessoal. As orcas residentes do sul do Pacífico foram observadas criando “escovas” a partir de algas marinhas do tipo kelp, utilizando-as em rituais complexos de limpeza mútua que demonstram não apenas inteligência, mas também sofisticação cultural.


A Descoberta Revolucionária

O comportamento inédito foi documentado através de imagens de drones de alta resolução no Mar de Salish, entre a Colúmbia Britânica (Canadá) e o estado de Washington (EUA). Durante um período de observação de 12 dias, entre abril e julho de 2024, os pesquisadores registraram 30 episódios deste comportamento extraordinário, que foi denominado “allokelping” pela equipe científica.

“Descobrir que essas baleias não estavam apenas usando, mas também fabricando ferramentas foi incrivelmente emocionante”, declarou Dr. Michael Weiss, diretor de pesquisa do CWR e principal autor do estudo publicado na revista Current Biology. O comportamento é ainda mais notável por envolver coordenação entre dois indivíduos, algo raramente documentado no reino animal.


Processo Detalhado de Fabricação e Uso das Ferramentas

O processo observado pelos pesquisadores é fascinantemente complexo e deliberado. As orcas utilizam seus dentes para quebrar pedaços específicos de algas pardas da espécie Nereocystis luetkeana, conhecidas como bull kelp, selecionando segmentos de aproximadamente 60 centímetros de comprimento.

Rachel John, estudante de mestrado da Universidade de Exeter que participou da pesquisa, descreveu sua primeira observação: “Estava assistindo a um dos vídeos em close quando vi algo que parecia um galho marrom entre duas baleias que estavam em contato uma com a outra”. A análise detalhada revelou que o comportamento segue um padrão consistente e coordenado.

Uma vez fabricada a “ferramenta”, as orcas posicionam o segmento de kelp entre seus corpos e executam movimentos sincronizados, rolando a alga entre si por períodos que podem se estender por até 12 minutos. Durante esse processo, os animais frequentemente adotam uma postura em formato de “S”, mantendo a alga posicionada adequadamente enquanto se esfregam mutuamente.

Uma orca, na esquerda, segurando alga marinha na boca persegue uma companheira para uma esfoliação coordenada – Imagem: Centro de Pesquisa de Baleias


Propriedades Benéficas das Algas Marinhas

A escolha das algas do tipo kelp não é acidental. Estas macroalgas possuem propriedades únicas que as tornam ideais para uso em cuidados com a pele. O bull kelp (Nereocystis luetkeana) apresenta uma estrutura firme, porém flexível, com superfície externa lisa, características que Dr. Weiss compara a “uma mangueira de jardim cheia, com superfície escorregadia”.

As algas marinhas são reconhecidas por suas propriedades anti-inflamatórias, antibacterianas e antioxidantes. Estudos científicos demonstram que extratos de algas marinhas possuem compostos bioativos, incluindo polissacarídeos sulfatados, que apresentam efeitos anti-inflamatórios comprovados. Adicionalmente, estas algas são ricas em vitaminas, minerais, aminoácidos e proteínas que promovem a saúde da pele.

No contexto da indústria cosmética, as algas marinhas são amplamente utilizadas por suas propriedades hidratantes, antioxidantes e de combate ao envelhecimento. Produtos à base de kelp são especialmente valorizados por sua capacidade de estimular a produção de colágeno e melhorar a elasticidade da pele.


Função Biológica e Social do Comportamento

Registro de duas orcas esfregando a “ferramenta” de alga marinha na pele – Imagem: Centro de Pesquisa de Baleias

A análise dos dados revelou padrões importantes sobre quando e com quem as orcas praticam o allokelping. O comportamento foi observado em todas as faixas etárias e gêneros, mas mostrou-se mais frequente entre indivíduos com maior descamação de pele ou sinais de problemas dermatológicos. Esta correlação sugere uma função higiênica importante para a manutenção da saúde cutânea.

Darren Croft, diretor executivo do CWR, explica a importância social do comportamento: “Sabemos que o toque é muito importante. Em primatas – incluindo humanos – o toque modera o estresse e ajuda a construir relacionamentos. Sabemos que as orcas frequentemente fazem contato com outros membros de seu grupo, mas usar kelp desta forma pode intensificar essa experiência”.

O comportamento também demonstrou forte correlação com laços familiares e similaridade de idade, sugerindo que o allokelping serve simultaneamente como prática de higiene e ritual de fortalecimento de vínculos sociais.


Tecnologia e Metodologia da Descoberta

Um aspecto particularmente notável desta descoberta é que ela permaneceu oculta por décadas, apesar do monitoramento contínuo desta população de orcas há quase 50 anos. A detecção só foi possível graças aos avanços na tecnologia de drones, que permitiram observações aéreas de alta resolução.

“O que considero mais notável é que, apesar de aparentemente ser um comportamento comum – vemos isso na maioria dos dias em que sobrevoamos essas baleias com nosso drone – ainda não havia sido descoberto nesta população, apesar de quase 50 anos de observação dedicada”, enfatizou Dr. Weiss.

A utilização de drones representou um divisor de águas na pesquisa de cetáceos, permitindo observar detalhes de comportamento que eram invisíveis a partir de embarcações ou da costa. Durante os 10 dias de estudo em 2021, os pesquisadores coletaram 651 minutos de vídeo que revelaram informações sem precedentes sobre interações sociais das orcas.

População Criticamente Ameaçada

As orcas residentes do sul representam uma população genética, ecológica e culturalmente distinta, atualmente classificada como criticamente ameaçada. Com apenas 73 indivíduos restantes segundo o último censo de julho de 2024, esta população enfrenta sérios riscos de extinção.

Dr. Weiss alerta sobre o futuro sombrio: “Não estamos vendo a taxa de natalidade necessária para sustentar a população. Sob o status quo, todas as nossas projeções indicam que a população continuará a declinar”. A principal ameaça à sobrevivência dessas orcas é a escassez de salmão-rei (Chinook), sua fonte primária de alimento, que tem experimentado declínios significativos devido às mudanças climáticas, pesca excessiva e destruição de habitat.


Contexto Evolutivo e Comparações

O uso de ferramentas no reino animal é relativamente raro e tradicionalmente associado a atividades de forrageamento ou atração sexual. Esta descoberta marca o primeiro caso documentado de cetáceos utilizando objetos como ferramentas para higiene, ampliando significativamente nossa compreensão sobre as capacidades cognitivas destes mamíferos marinhos.

Enquanto chimpanzés confeccionam gravetos para pescar cupins, corvos criam galhos em forma de gancho para capturar larvas, e lontras-marinhas quebram mariscos com pedras, o comportamento das orcas é único por envolver fabricação colaborativa de ferramentas para uso social.

O allokelping difere do comportamento já conhecido de “kelping”, onde orcas individuais brincam com algas usando cabeças, barbatanas e corpos. A nova descoberta envolve seleção deliberada, modificação da alga e uso coordenado entre parceiros, qualificando-se como verdadeira fabricação de ferramentas.


Implicações Científicas e Conservacionistas

Esta descoberta tem profundas implicações para nossa compreensão da inteligência animal e da complexidade cultural dos cetáceos. O comportamento demonstra que as orcas possuem capacidades cognitivas mais sofisticadas do que se imaginava, incluindo planejamento, modificação intencional de objetos e transmissão cultural de conhecimentos.

Para a conservação, a descoberta adiciona uma nova dimensão à urgência de proteger esta população única. A perda desta população significaria não apenas a extinção de uma linhagem genética, mas também o desaparecimento de tradições culturais desenvolvidas ao longo de gerações.


Perspectivas Futuras

A pesquisa abre novas fronteiras para o estudo do comportamento animal e levanta questões importantes sobre outras capacidades não documentadas dos cetáceos. Os pesquisadores planejam expandir os estudos para determinar se comportamentos similares ocorrem em outras populações de orcas ao redor do mundo.

A descoberta também ressalta a importância de tecnologias emergentes na pesquisa científica e sugere que muitos outros comportamentos animais complexos podem ainda estar esperando para serem descobertos. Como Dr. Weiss observou, “isso demonstra não apenas o poder de novos métodos de observação, mas também o quanto ainda temos para aprender sobre esses animais”.

O fato extraordinário do uso de algas marinhas como ferramentas de higiene pelas orcas residentes do sul não apenas revoluciona nossa compreensão sobre a inteligência cetácea, mas também destaca a urgente necessidade de proteger estes magníficos mamíferos marinhos. Com apenas 73 indivíduos restantes, cada dia conta na luta pela preservação desta população única e de suas tradições culturais milenares. É fundamental que governos, organizações de conservação e a sociedade civil unam esforços para proteger o habitat destas orcas e garantir a disponibilidade de seu alimento principal, o salmão-rei, assegurando assim que as futuras gerações possam testemunhar e aprender com estes comportamentos extraordinários que redefinem os limites da inteligência animal.

Fonte: Current Biology.

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